sábado, 22 de dezembro de 2012

[ Crítica ] O Hobbit - Uma Jornada Inesperada

Mais de uma década depois de apresentar ao mundo e ao grande público sua visão de O Senhor dos Anéis, Peter Jackson volta ao universo criado por J.R.R. Tolkien - ainda que não fosse a sua primeira opção - e nos entrega o ótimo O Hobbit - Uma jornada Inesperada (primeira parte de uma trilogia), se permitindo mudar a sua forma de adaptar para dar mais tempo à narrativa e à magnitude da criação do mestre da fantasia medieval. Assim, dividindo um livro em três partes no cinema, abre espaço para uma narrativa menos apressada, mas não menos épica.

Para quem ainda não conhece a obra, O Hobbit conta a trajetória de Bilbo Bolseiro (interpretado por Ian Holm na versão original, aqui fazendo uma participação especial, e por Martin Freeman, que faz a sua versão jovem nesta nova trilogia) e de sua grande aventura junto a 13 anões na tentativa de reaver o seu reino perdido, Erebor, tomado anos antes pelo dragão Smaug (Benedict Cumberbatch). Acompanhados pelo já conhecido Gandalf (Ian McKellen) e liderados pelo rei anão Thorin Escudo-de-Carvalho (Richard Amitage), eles seguem sua missão por terras desconhecidas da Terra-Média, enfrentando orcs, trolls, wargs e uma infinidade de outros inimigos.


Como toda boa adaptação, Uma Jornada Inesperada conta com liberdades criativas tanto no ritmo de diversas passagens do material original, como no conteúdo, acrescentando informações, personagens e elementos presentes em outras obras de Tolkien. Ou seja, a adaptação que, ao todo, deve somar quase 10 horas de material finalizado (além de possíveis versões estendidas),  foi enriquecido com uma infinidade elementos presentes em outras obras do autor, algo impossível na trilogia original, que adaptou um livro por filme. Além disso, Jackson tomou alguns cuidados para estabelecer uma ponte entre todos os filmes, tornando-os parte, de fato, de um mesmo universo ficcional e, ao mesmo tempo, deliciando os fãs, mesmo aqueles que só acompanham os filmes, com várias referências de um no outro. Um exemplo disso é a representação na tela de uma das histórias contadas às crianças por Bilbo em A Sociedade do Anel nos mínimos detalhes, dando mais um motivo para que todos revisitem os primeiros longas.


Mesmo a participação de Radagast, o Castanho (Sylvester McCoy), que em um primeiro momento parece descartável, já que não soma à narrativa imediata, é muito bem vinda não só como estopim para uma nova passagem entre cenas, mas também para quer fique muito claro que a Terra-Média, de alguma forma, está passando por alguma transformação muito mais profunda e maligna do que aqueles tempos de paz transparecem. Sua participação traz uma nova dinâmica para aquele instante do filme e diverte até mesmo pela inusitada perseguição de wargs ao seu trenós de coelhos. Também é importantíssimo que o diretor tenha criado o líder orc Azog (Manu Bennet), já que esta primeira parte carecia de um grande antagonista ao grupo, visto que Gollum (Andy Serkis) não é um vilão clássico em nenhum dos sentidos.


O Hobbit - Uma Jornada Inesperada se coloca, portanto, como um ótimo filme. Sem a grandiosidade narrativa da trilogia que o precedeu (já que não é o mundo todo a ser salvo, mas sim um objetivo bem mais particular, ainda que tão nobre quanto), ele se permite ser mais leve no tom, com ótimos momentos cômicos e de aventura descompromissada. Tantos anões juntos poderia parecer algo meio confuso, mas Jackson tomou cuidado para nos apresentar cada um deles calmamente, quase que como estereótipos dentro de um arquétipo já bastante estabelecido neste universo. Cada qual vai, aos poucos, assumindo o seu papel nesta aventura. Contudo, claramente Thorin se destaca não só pela profundidade maior dada ao seu personagem, mas também pelo ótimo trabalho de direção de atores e de interpretação. Freeman também se mostra bastante confortável como Bilbo e McKellen dispensa comentários.


Sem estrelas do primeiro escalão de Hoolywood, a exemplo de O Senhor dos Anéis, esta nova trilogia, pelo menos em seu primeiro terço, mostra acerto novamente em seu elenco. Aliás, se há uma estrela entre os atores, este é definitivamente Andy Serkis. A cada novo trabalho desta que tem se tornado a sua especialidade - a captura de movimentos - a evolução é evidente. Certamente, ele está escrevendo seu nome na história do cinema e, mais cedo ou mais tarde, deve ser premiado com um Oscar. Peter Jackson também volta a ser destaque depois de obras não tão bem sucedidas nas bilheterias. Parece que há diretores que nasceram para nos contar uma história de fato. Os Wachowski e Matrix, George Lucas e Star Wars... Peter Jackson e o universo de Tolkien. Que bom.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

[ Artigo ] Nietzsche, Diderot, Matrix, e as reflexões sobre a Verdade e a Mentira


A questão da relação entre verdade e da mentira é a temática dos textos O sobrinho de Rameau, de Diderot, e do Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, de Nietzsche. Curioso, portanto, é o fato da pergunta “o que é real?” ser um ponto chave e de convergência em ambas as reflexões.

Cypher, em Matrix (1999)
Cypher, em Matrix (1999) - Imagem Divulgação
Esta problemática, que pode muito bem ser experenciada de uma maneira bastante interessante em Matrix, de 1999, quando o Morpheus (Laurence Fishbourne) oferece duas possibilidades, duas pílulas a Neo (Keanu Reaves), prometendo que uma o levaria a sua vida de mentirinha e a outra lhe mostraria o buraco do coelho (em clara referência a outra obra clássica, Alice No País das Maravilhas, de Lewis Carroll) do que é real, vai para além dos conceitos da antítese maniqueísta entre verdade e mentira, ainda que seja parte das reflexões a partir deste ponto. Se “a ignorância é uma benção”, como diriam mais tarde, no mesmo filme, Cypher (Joe Pantoliano), cabe uma reflexão acerca da fala de Nietzsche:

Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo neste nível, no fundo não é a ilusão, mas as consquências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida [...] (NIETZSCHE, p. 46).

Assim, parece que os debates acerca do que é mentira ou do que é verdade parecem suprimir a noção de um ser ruim e outro ser, necessariamente, bom. Afinal, se o que percebemos como realidade, ou como uma verdade inquestionável, é simplesmente a interpretação de nosso cérebro a partir dos sinais elétricos recebidos pelos nossos cinco sentidos - ponto que é bastante explorado também por Descartes em suas obras -, então a real importância de nossa percepção não é o nível de verdade naquilo que percebemos ao nosso entorno, mas sim as consequências disto para outras esferas da nossa existência. 

Assim, em um primeiro instante, a mentira pode sempre parecer algo ruim, algo hostil a própria existência humana, já que são poucos aqueles que assumem ter prazer em serem enganados. Não a toa, a tal da sinceridade sempre é colocada como uma das qualidades desejosas na índole de qualquer um. Mas uma mentira prazerosa, uma ilusão permitida, por assim dizer, não é tão desastrosa assim. Afinal, o que são os jogos - analógicos ou digitais - na construção de uma cultura social? O que são o cinema, o teatro, a literatura e tantas outras formas de arte que não uma mentira permitida?

Ao entrar em uma sala de cinema escura, assinando ali um contrato social onde, por cerca de duas horas, um grupo de desconhecidos estará em silêncio assumindo para si uma permissão de ser enganado, de se envolver como uma história que sabe não ser, de fato, real (se é que alguma história o é). O sujeito se permite emocionar-se de todas as formas diante uma janela aberta, envolver-se de forma tão intimista com um protagonista que, por alguns momentos, se torna uma projeção de si mesmo em uma situação outra que não a que ele entende ser a sua. Chora, ri e se assusta tal qual fora planejado por aquele que idealizou a ilusão, a mentira.

O próprio homem, porém, tem uma propensão invencível a deixar-se enganar e fica como que enfeitiçado de felicidade quando o rapsodo lhe narra contos épicos como verdadeiros, ou o ator, no teatro, representa o rei ainda mais que regiamente do que o mostra a efetividade. O intelecto, esse mestre do disfarce, está livre e dispensado de seu serviço de escravo, enquanto pode enganar sem causar dado, e celebra então suas Saturnais (NIETZSCHE, p. 51).

Então, o importante seria sempre saber discriminar a realidade da ilusão? Seríamos plenamente felizes ao conseguir, tal como o próprio Cypher, identificar o que nos é colocado como verdades implantadas, como a carne suculenta que não passa de um sinal elétrico diretamente implantado no centro nervoso de seu corpo? Se assim for, o problema não é a mentira ou a verdade, mas sim a consciência de estar diante de um e de outro, bem como o resultado de nossa relação com esta informação. 

Se assim for, ser verdade ou mentira é irrelevante. Se for uma verdade ruim e desconfortável, que eu não saiba. Se for uma mentira “do bem”, que eu possa partilhar dela. Mas isso jamais poderia ser assumido publicamente, diante a moral social. Diz o ditado que mais vale uma verdade que faça sofrer do que uma mentira que faça sorrir, ainda que ambas possam estar sempre juntas. Não é exatamente disso que trata Diderot nos diálogos entre ele e o tal sobrinho de Rameau? Afinal, o que é este “ELE” criado pelo autor para partilhar de suas inquietações que não um lado obscuro do próprio filósofo que projeta em uma outra personagem seus pensamentos mais, digamos, amorais? E, mais curioso ainda, o que é a compreensão do leitor senão a conivência com esse artifício do autor em criar uma situação fictícia e ilusória para tratar das incoerências morais de todo ser humano?

Ora, se Diderot assumiu, contando com a consensual e assumida cumplicidade do leitor, a existência de um tal sobrinho sequer nomeado para explicitar ali alguns de seus pensamentos mais moralmente questionáveis, os quais certamente não poderia assumir serem seus, não seria exatamente na mentira o caminho encontrado para tornar públicas as verdades de seus pensamentos? O autor personifica a obviedade de sermos, todos nós, seres contraditórios, agentes capazes de, a todo o momento, questionarmos nossas verdades e, principalmente, as verdades dos outros.

Pode-se perceber, em cada trecho deste diálogo, aquele anjinho e aquele diabinho nos ombros do autor, ambos com o rosto dele, mas cada um trazendo argumentos e inferências acerca dos temas que ambos trazem a tona. Aqueles mesmos de desenhos animados, sabe? Enquanto um deles mantém uma linha moral, o outro traduz toda a loucura do pensamento humano. Ele não é adepto da mentira, ou da maldade. É a manifestação do “eu” que não pode vir a tona. E acaba por desconstruir a índole do autor e de toda uma sociedade com tamanha ênfase que Diderot precisa explicitar não ser seu próprio pensamento. O sobrinho precisa ser o “não-eu”. Precisa ser “ELE”.

Ah, a verdade e a mentira. O real é a ilusão. Como podemos saber o que é a verdade? Como afirmar que alguma coisa é real? Como ter a certeza, como diria Descartes, de que não estou eu com meu cérebro afundado em um balde com um dispositivo nefasto me enviando informações para me convencer de algumas verdades? Não dá. Não posso ter certeza nenhuma do real a mim apresentado, seja pela vivência neste dado momento histórico, seja pelo que percebo ao meu redor. Mas posso questionar cada um destes elementos. Posso fazer o meu papel de louco, posso materializar o sobrinho de Rameau para, descompromissadamente, revirar tudo isso. Não é nada ruim ter aquele diabinho ao lado para questionar as nossas verdades.


Bibliografia:

DIDEROT, D. O sobrinho de Rameau. In: DIDEROT, D. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1979.
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral  (Aforismo 1). In: Obras Incompletas. São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1978.


Filmografia:

Matrix (The Matrix). Andy Wachowski e Larry Wachowski. Warner Bros Pictures. 1999
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